Configuração#7

Colombo a partir o Ovo
SUSANA GAUDÊNCIO
















O Prometeu moderno na casa de Salomão


     Poder-se-á identificar na vontade do homem se impor sobre a natureza, uma tendência semelhante ao mitológico Prometeu, que ao roubar o fogo –  símbolo do conhecimento –  desafiou a posição superior dos Deuses. Simbolicamente, o sentido da descoberta cientifica ou do progresso tecnológico passa por esta ideia do fogo de Prometeu, porque de uma forma similar, qualquer avanço técnico capacita o homem de um poder superior através do conhecimento científico ­— aproximando a ciência e a tecnologia da magia ou da acção divina. Ora este progresso comporta benefícios e consequências—no caso de Prometeu foi o castigo dos deuses.

     Em 1818, Mary Shelley publica anonimamente a sua novela literária, “Frankenstein; ou o Prometeu Moderno”. Por esse tempo, muitos consideravam a nova ciência da eletricidade com admiração e terror. Em “Frankenstein”, Shelley emprega as duas novas ciências da química e da eletricidade, bem como a tradição renascentista da alquimia na procura do elixir da vida afim de evocar a possibilidade da reanimação de cadáveres, numa referência óbvia ao mito de Prometeu.
     Mary Shelley narra como o Dr. Victor Frankenstein, um jovem estudante de medicina, em Genebra, cria um Monstro, uma criatura com aparência quase humana, a partir de diferentes partes de cadáveres e às quais dá vida. A colossal força e a aparência monstruosa da criatura, provoca horror naqueles que a vêm. Frankenstein, decepcionado com o resultado da sua experiência, abandona a criatura à sua sorte, partindo numa viagem pelo mundo. O Monstro persegue o médico até o conseguir convencer a criar-lhe uma companheira. Contudo, Frankenstein, receando agravar a situação, destrói o modelo feminino, que começara a construir. O Monstro, furioso, vinga-se matando a noiva do jovem médico, e mais tarde, o seu próprio criador.
     O subtítulo do livro “O Prometeu Moderno", faz referência directa ao Titan Prometeu da mitologia grega. Prometeu é amigo dos homens, e por eles rouba o fogo do Olimpo. O fogo é a origem do saber, do conhecimento, a força divina que faz a humanidade progredir. Dar o fogo aos homens foi dar-lhes a capacidade de vencer a natureza; Prometeu representa a força criadora da civilização, o progresso tecnológico, a evolução da humanidade. Ao actuar contra os planos de Zeus, Prometeu é severamente punido e agrilhoado a uma rocha, onde uma ave, ou grifo, devora o seu fígado, que se renova diariamente por toda a eternidade. Para além do título, Shelley toma emprestado do mito de Prometeu, uma noção de consequência resultante da procura do conhecimento e poder. Victor Frankenstein é a encarnação moderna de Prometeu. Ele tal como o Titan, é fascinado pelo poder de uma fonte de energia, no seu caso o relâmpago (energia elétrica). É a partir deste poder que decorre o sofrimento e tortura interna que irá posteriormente sofrer. Imediatamente após a criação da criatura, Frankenstein adoece com sentimentos de culpa e ambivalência pela invenção estabelecida. A sua tortura espelha a de Prometeu, imortal e eterna.
     O texto dá conta da visão científica do mundo emergente como uma religião alternativa, que exige fé, administra sacramentos e oficializa rituais.
      A “Nova Atlantis” (1642) de Francis Bacon tornou-se no protótipo literário para todas as utopias de fundação tecnológica e científica subsequentes. Bensalém, uma ilha mítica que lhe serve de cenário principal é descoberta pela tripulação de um navio europeu perdido algures no oceano Pacífico, a oeste do Peru. A história descreve a ilha, os seus costumes e tradições, mas refere particularmente a Casa de Salomão, um centro de investigação científica patrocinado pelo estado. A Casa de Salomão é o lugar vital de Bensalem, sítio para onde o conhecimento do mundo converge, trazido por viajantes, investigado por académicos e cientistas, funciona como um repositório de informação e aprendizagem defendendo uma procura do saber desinteressada. É local para acervo de todas as invenções científicas, maravilhas da natureza e outras curiosidades. Aqui são encorajados métodos experimentais, afim de estabelecer as causas, os efeitos, os segredos das matérias ou objectos e ampliar os limites do império humano na realização de todas as coisas possíveis. Trabalha-se na demanda pelo Ovo de Colombo.
        As narrativas tecnológicas dão visibilidade às contradições culturais de uma dada época, não apenas como reflexo social, mas auxiliando a constituir e divulgar essas contradições. Nos vários debates sobre novas tecnologias podemos encontrar por um lado, a ode à máquina, o fascínio acrítico pelos progressos técnicos, com uma vontade utópica de transformar a sociedade interferindo no quotidiano e, por outro, o anúncio do fim de toda a criatividade humana, da desumanização, o pessimismo e o medo do impacto dessas inovações e das consequências que elas podem trazer. São duas faces do determinismo tecnológico, e ambas apagam a agência humana e as construções socioculturais que as fundamentam.

A série de desenhos apresentada reflecte temas e narrativas ancoradas na ideia de utopia tecnológica e do progresso cientifico que tantas vezes replica os efeitos insólitos da natureza. A crença utópica de que para imaginar um novo mundo é necessário que este se sobreponha a outro encontra paralelo na metodologia cientifica da tentativa e erro, na busca pelo conhecimento. Os desenhos utilizam a acumulação, a sobreposição e a alteração de informação como ferramentas para a persistência que leva à descoberta de novos mundos, novos conhecimentos, e novos caminhos.

Susana Gaudêncio


Susana Gaudêncio, 1977, vive e trabalha em Lisboa Licenciada em Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Terminou o Mestrado em Belas Artes no Hunter College, City University of New York em 2008, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação Luso-Americana. Expôs individualmente no CAV (Centro de Artes Visuais), Coimbra, na Galeria Carlos Carvalho, Espaços do Desenho, etc. Em 2009 realizou a exposição individual "Houyhnhnm" na ISE Foundation, em Nova Iorque. Em 2010, participou na exposição "ResPublica", na Fundação Calouste Gulbenkian. Em 2012 expôs "Época de Estranheza em Frente ao Mundo", no Museu Nacional de Arte Contemporânea—Museu do Chiado. Desde 2010 leciona no departamento de Artes Plásticas da ESAD das Caldas da Rainha. Nesse ano forma com a artista Mafalda Santos o colectivo Pessoa ColectivaÉ Doutoranda em Belas Artes na Universidade de Lisboa, e bolseira da FCT.

http://susanagaudencio.com/