Poeira, Fumo, Coisa
SORAYA VASCONCELOS
SORAYA VASCONCELOS
A tua Configuração tem
como título Poeira, Fumo, Coisa.
Palavras bastante abstractas que, para já, fogem a uma tentativa de figuração
numa imagem mental concreta e singular. Nenhuma forma particular as
circunscreve. Porquê este título?
O trabalho desenvolve-se num continuum e acaba por se criar um léxico de formas, imagens,
substâncias que, a dada altura, se conjugam para criar a “frase” ou statement provisório que é uma
exposição; o título procura dar conta da sensação gerada pela ligação
específica de determinados trabalhos. Neste caso, será uma sensação
fragmentária das coisas. As palavras que usas - “nenhuma forma particular as
circunscreve” - são uma boa descrição; baseiam-se na impressão de uma espécie
de magma subjacente, algo que corre, que por vezes cristaliza em determinados
objectos, que depois volta a fundir-se.
Há uma passagem da Obra
ao Negro de Marguerite Yourcenar, na qual é referida a formulação alquímica
Solve et Coagula (volatiliza o fixo e
fixa o volátil). Interessa-me essa ideia de que a procura de um equilíbrio
implica sucessivas dissoluções e precipitações; que é algo que nunca é atingido
de uma vez por todas, as coisas estão sempre em movimento, sempre a evadir-se e
portanto o trabalho é interminável.
Quando pensei no título, imaginei-o em círculo, um loop entre aquilo que é designado por
“poeira”, por “fumo” e por “coisa”. Também queria que os termos não seguissem
sempre a mesma ordem: poeira, fumo, coisa, fumo, coisa, poeira, fumo, poeira,
coisa, etc.
Apresentas no Next Room
um conjunto de trabalhos em suportes diferenciados, desenhos, gravuras,
fotogravuras e objectos construídos. Em que vão consistir concretamente e qual o
critério que te fez conjugar estes trabalhos?
Existe, nesse continuum
do trabalho, o aspecto mais recente,
aquele com o qual se debate no presente. Queria apresentar os trabalhos que
melhor refletissem essa ideia/sensação mais presente, aqueles que pelas suas
liga ções/associações melhor a sustivessem.
A gravura foi uma descoberta recente e muito interessante,
pela sua materialidade, o traço marcado, riscado, rasgado até. Tem um lado
muito físico. O facto de gerar originais múltiplos permite jogar com camadas; o
trabalho mais recente apresentado é uma espécie de cenário de teatro, os papéis
recortados permitem explorar luz e sombra, não a sua representação mas de facto.
Nos teus trabalhos
anteriores convive um interesse sobre o detalhe – temos, por exemplo, as fotos
de pormenores de matéria. Por outro lado e, muitas vezes paralelamente,
constróis objectos, uma espécie de máquinas que não fazem nada. Fazes ainda
pinturas e desenhos monocromáticos de florestas. O que te faz partir para
registos tão heterogéneos e trabalhar, muitas vezes de uma forma simultânea,
nestas formas aparentemente tão diversas?
Para responder à questão da heterogeneidade/diversidade,
acho que o trabalho de um artista é um esforço no sentido de corporizar uma sua
sensação fundamental e fundadora, da qual toda a sua produção deriva; trata-se
de um processo experimental em que se vão ensaiando diferentes formas de a exprimir.
As mesmas questões levam à materialização de formas/objectos distintos e a
própria materialização/plasticidade dos trabalhos sugere, por sua vez, novas
questões. Desmultiplicam-se os caminhos possíveis e os vários aspectos exigem
ser explorados. Mas há um cerne, a tal “sensação fundamental”, que faz com que
certos objectos sejam “reconhecidos” e aceites e outros não.
Trabalhei, anteriormente, com fotografia, em parte porque
queria registar objectos/situações perecíveis. Mas quando deixou de me servir
para exprimir aquilo que queria, virei-me para o desenho, para a gravura.
Por exemplo, os tais desenhos/pinturas de florestas que referes
têm muito a ver com o gesto de colocar pequenas pinceladas na folha (o querer
que fique marcado), não sei se mais até do que com as imagens resultantes.
Claro que as imagens servem para dirigir o gesto, como também para concretizar
outros aspectos que também estão envolvidos. Nesse caso, tinha também a ver com
a luz que estilhaça a forma, que a torna instável. Interessou-me que houvesse
leituras a vários níveis: ao nível da imagem, ao nível da superfície, também ao
nível do espaço – os rectângulos negros na parede, como se fossem portas.
Interessa-me um jogo de afastamento e de aproximação, que
altera o modo como nos relacionamos com as coisas.
Já os objectos, não os vejo como máquinas, encaro-os mais
como estatuetas (no sentido de estatuetas ritualistas) ou memorabilia. Vão surgindo ao longo do trabalho, por vezes de restos
que sobram de outros trabalhos; são construídos pelas “forças” que são
exploradas, de forma mais abstracta e desintegrada, nas imagens (desenhos,
gravuras, fotografias). São receptáculos de sentido(s), que ganham formas mais
antropomórficas, talvez. São as “coisas” do título, surgem quando a “poeira” e
o “fumo” assentam (estes são antes movimentos); estabilizam momentaneamente em
objectos que depois voltam a volatilizar-se.
No email que trocámos de preparação da
exposição falaste num olhar espantado sobre o mundo. Um olhar espantado
pressupõe um olhar original, um primeiro olhar sobre as coisas e o mundo que as
contém. Que tipo de olhar é esse? De que forma nesta era dos motores de busca e
dos óculos do Google nos podemos ainda espantar com o mundo?
O espanto é sempre possível. Se alguma coisa, a internet
contribui para aumentá-lo, porque amplia a noção de complexidade, multiplica as
ligações possíveis. Isto se tivermos apenas em conta os conteúdos que carrega
ou disponibiliza, porque se pensarmos na internet enquanto coisa/entidade,
então aí... é esmagador. Um cérebro imenso e invisível que nos cerca.
O espanto surge quando se olha para as coisas não as tomando
como garantidas, das mais simples às mais complexas; vê-las como resultantes de
uma imensurável rede de acontecimentos... é quase inconcebível, é cósmico. É
muito dissolvente, também.
Nesse email,
referi que dar sentido às coisas implica tomar posições, decisões, mas que
essas não se aguentam, porque quando aproximamos ou recuamos o olhar (para ver
melhor, entender, contextualizar) elas tendem a desfazer-se; os momentos de
sentido são breves. No fundo, o que isto quer dizer é que não existe uma distância certa para olhar para as coisas, a cada
momento dado. Como está tudo em movimento/mutação, é preciso estar sempre a
ajustar o olhar – a focá-lo.
Assim, o sentido parece resultar de um jogo de forças
(físicas): uma constrói, a outra destrói. Ciclicamente, surge a vontade de aderir
a umas das duas. Há uma pendularidade: constrói-se, aproxima-se, destrói-se;
constrói-se, recua-se, destrói-se; volta-se sempre a um ponto inicial, que é a
própria carne das coisas, a sua matéria.
Soraya Vasconcelos (1977)
Desenvolveu entre 2010 e 2014, um projecto de Doutoramento na área das Artes Visuais na Universidade do Algarve, apoiada por uma bolsa da FCT. Licenciou-se pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa (2002), realizou um curso Técnico de Fotografia na ETIC (2002), uma Pós-graduação em Imagem Digital na Universidade Autónoma de Barcelona (2004) e uma Pós-graduação em Filosofia - Estética na Universidade Nova de Lisboa (2010).
Desde o ano 2000 que mantém uma actividade artística contínua, realizando exposições individuais e colectivas em diversas galerias e instituições e participando em residências artísticas. Em 2005 foi seleccionada para participar na 1ª edição do Curso de Fotografia do Programa Gulbenkian Criatividade e Criação Artística, do qual surge, em 2006, o colectivo DOZE com quem desenvolve trabalho nas áreas da fotografia e da edição, nomeadamente o projecto "Paisagem e Povoamento". Em 2007 é acolhida pelo INEB (Porto) ao abrigo do Programa Rede de Residências: Arte, Ciência e Tecnologia (DGArtes/Ciência Viva).
Em 2011 associa-se à Contraprova – Atelier de Gravura (Lisboa) e em 2014, após coorganizar o programa "Réplica: Reflexão sobre Gravura Contemporânea" (2013), torna-se membro da Oficina Bartolomeu dos Santos (Tavira).
http://sorayavasconcelos.blogspot.pt/